Solidão dos idosos: uma realidade que o Natal torna visível
No Natal, quando as cidades se enchem de luzes e as famílias se juntam à volta da mesa, há quem enfrente esses dias com pouco mais do que a própria presença. Todos os anos, milhares de idosos em Portugal passam os dias festivos sozinhos, num vazio que se torna mais pesado quando o mundo parece celebrar em uníssono.
Para muitos, a solidão não é novidade, é uma rotina que se arrasta ao longo do ano. Mas o Natal amplifica ausências, memórias e a sensação de que a vida ficou pequena demais para tantos silêncios. Entre recordações de tempos em que havia casa cheia e a consciência de que esses rostos já não voltam, esta é uma época em que o coração pesa mais. E é também aqui que entram psicólogos, voluntários e associações que tentam devolver algum calor humano a quem sente que o Natal já não lhes pertence.
Em entrevista ao Conta Lá, o presidente do Observatório da Solidão, Adalberto Dias de Carvalho, refere que, na Europa, “Portugal só é ultrapassado pela Itália quanto ao impacto demográfico da velhice na sua população, vivendo sozinhas 40% das pessoas com mais de 85 anos, e tendo 65 anos ou mais 50% das famílias que integram apenas uma pessoa”.
O também professor do Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo (ISCET), destaca ainda que “estes números se densificam nos meios rurais, sendo disso exemplo Vinhais, Almeida e Alcoutim com mais de 700 idosos por cada 100 jovens”.
“Estes dados, disponibilizados pela Pordata, colocam-nos perante uma realidade incontornável, a que acresce o facto de sabermos também que dois terços dos idosos sentem solidão”, explica-nos.
Perante estas métricas, Adalberto Dias de Carvalho relembra as potenciais causas da solidão nos mais velhos, destacando, entre outras, “a perda ou indiferença de familiares e amigos, o incremento das doenças, o desaparecimento dos vínculos laborais, a ausência de atividades de lazer e o próprio estereótipo social da velhice, estigmas estes muitas vezes inevitáveis na sua totalidade”.
Com o aproximar da época natalícia, um estudo do Observatório da Solidão realizado em 2023 evidenciou que 53% dos idosos vive a época do Natal com tristeza plena e 33% com um misto de tristeza e bem-estar, o que, na opinião do professor, “contraria as imagens e mensagens de efusiva, integral e universal alegria difundidas, sobretudo através da publicidade, tornando de facto o período natalício uma desculpa ética para o consumismo”.
A solidão da "cadeira vazia"
Francisca Silva Ferreira, psicóloga e Diretora Clínica no Núcleo Casa, no Porto, considera que o tema é bastante invisível aos olhos da sociedade, daí ser necessário pensar sobre ele, não só no Natal, mas também noutras épocas. “O Natal não cria a solidão, mas torna-a mais visível e mais difícil de suportar. Esta época pode pesar mais do que qualquer outra, pois traz sempre memórias antigas – uma casa cheia, aquelas rabanadas – mas também traz dores recentes que se refletem na solidão interna”.
“Do ponto de vista emocional, acho que o que mais magoa estas pessoas é a cadeira vazia, o telefone que não toca. Muitos idosos também não pedem ajuda, porque não querem incomodar. Têm dificuldade em mostrar as suas vulnerabilidades. Além disso, também considero que existe uma certa falta de propósito. Ouvimos os mais velhos dizerem que já viveram muita coisa, muitos Natais, mas isso é mais uma capa da invisibilidade”, acrescenta.
A especialista explora a diferença entre estar sozinho e sentir-se solitário, destacando que a solidão é frequentemente uma “dor da alma” que se manifesta psicossomaticamente. Já sobre o Natal, Francisca Silva Ferreira refere que a época também intensifica o impacto da perda de entes queridos e a quebra de rotinas, funcionando como uma “lupa da ausência”.
“Esta é a época mais familiar do ano e, por isso, deveríamos sentir-nos muito quentinhos. Mas quem está só sente exatamente o oposto: ‘A quem é que eu pertenço? Quem é que ainda se preocupa comigo? Quem é que cuida de mim? Qual foi o meu património afetivo?’”, enfatiza.
De acordo com a psicóloga, “encontramos idosos que, pelas suas características de vulnerabilidade, vão expondo isto como um processo de vitimização. Em contrapartida, também existem idosos que continuam a pôr-se no lugar de pais e, para protegerem os filhos, dizem que estão bem”. Ainda assim, não podemos esquecer que também existem “muitos idosos que vivem acompanhados pelas suas famílias e que se sentem profundamente sós”.
Adalberto Dias de Carvalho partilha da mesma opinião, explicando as conjunturas sociais que poderão levar a este sentimento.
“Uma sociedade secularizada e hedonista como a nossa não oferece compensações que lhes emprestem um sentido, uma compensação. Acontece igualmente que, prevalecendo por si só o sucesso como um valor, aqueles e aquelas que se tornem protagonistas da infelicidade tendem a não ser somente secundarizados como até ignorados. São olhados como acarretando custos – económicos, pessoais e sociais – sem aparentes contrapartidas”.
De destacar ainda que o isolamento prolongado é, muitas vezes, a causa para maiores depressões nos idosos, pois alertam um estado de autoquestionamento e dúvida sobre o seu valor.
A presença das instituições e o papel da sociedade
Qual é, então, o papel da comunidade, particularmente das gerações mais novas, no combate à solidão? “Disponibilidade e presença”, aponta Francisca Silva Ferreira. “A primeira coisa que percebemos é que estas pessoas precisam imensamente de ser escutadas, só que não há muita paciência para as escutar. Mas a verdade é que a dor diminui através da escuta”, assevera a psicóloga.
Desta forma, como procuram as associações e instituições sociais combater este problema? As estratégias são diversas, mas convergem todas na mesma ideia central: é essencial fortalecer as redes de apoio e dinamizar as comunidades que rodeiam os idosos, criando oportunidades reais para que se relacionem e participem ativamente na vida local.
Um exemplo é o trabalho da Associação Coração Amarelo (ACA), uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) de apoio a idosos, fundada há 25 anos por sete mulheres da área social e criada para servir a comunidade. Estivemos à conversa com a fundadora e presidente da Direção Nacional, Rosa Araújo, de 77 anos.
A organização, que se mantém através de trabalho voluntário e opera com 11 delegações no país, prioriza a oferta de companhia e afeto através de visitas domiciliárias e de diversos programas de sociabilização, como workshops e passeios. Ao Conta Lá, a também assistente social especifica que Lisboa tem o maior número de idosos isolados, sendo que a Coração Amarelo apoia mais 200 por ano. “No total, chegarão a ser mais de mil” as pessoas a quem a associação presta ajuda.
Embora o isolamento seja combatido ao longo de todo o ano, a época natalícia intensifica as atividades, incluindo a distribuição de cabazes e “miminhos” de Natal, e a organização de almoços festivos para os beneficiários. O grande desafio da associação reside na angariação contínua de voluntários comprometidos e de meios para custear os transportes, sendo a sua missão garantir que os mais velhos usufruam de uma vida respeitosa e livre de solidão.
Sendo da opinião de que a época natalícia realmente intensifica os sentimentos de isolamento ou de abandono, Rosa Araújo acredita que a Associação Coração Amarelo “é uma presença” na vida destes idosos que vivem uma rotina monótona. Já para si, ver o trabalho que tem sido alcançado ao longo dos anos, “é uma alegria e uma certeza de que vale a pena continuar”.
Em Ílhavo, a campanha ‘Por um Natal mais Próximo’ também se tornou um exemplo de como uma autarquia pode atuar de forma prática para reduzir a solidão entre os mais velhos durante a quadra. A iniciativa nasceu em 2020, no contexto da pandemia, e mantém-se porque, como sublinha a equipa da Maior Idade ao Conta Lá, “basta existir um idoso sozinho para que a autarquia intervenha”.
Todos os anos, a Câmara Municipal mobiliza colaboradores e voluntários para identificar pessoas com mais de 65 anos que possam passar a consoada isoladas - um trabalho feito através das instituições sociais, GNR, juntas de freguesia, paróquias e também de sinalizações da própria comunidade. No dia 24, as equipas percorrem o concelho para entregar uma pequena lembrança e garantir um momento de conversa, criando, mesmo que por instantes, um ponto de contacto emocional com quem vive sem rede familiar.
Além do impacto imediato, a campanha funciona como porta de entrada para apoios regulares. Durante as visitas, os voluntários recolhem informação que pode originar encaminhamentos para serviços municipais, atividades de convívio ou acompanhamento social contínuo.
A equipa destaca que o importante não é apenas o gesto pontual, mas o efeito de sensibilização comunitária: “Temos mais sinalizações porque a campanha ganhou visibilidade”. Para o município, esta proximidade ajuda a prevenir o isolamento ao longo de todo o ano e a reforçar a ideia de que o Natal também se faz quando uma comunidade decide estar atenta aos seus mais velhos.
Estarmos todos mais próximos
A psicóloga Francisca Silva Ferreira é da opinião de que as intervenções comunitárias são determinantes. “A solidão não precisa de ser combatida com grandes gestos”, remata na nossa entrevista. “Se cada um de nós ‘adotasse’ um idoso, um vizinho, um conhecido do nosso bairro, muitas pessoas já estariam em promoção de mudança”.
E conclui: “Acho que a sociedade tem de pensar e sentir sobre o tema. Na pressa do dia a dia, estamos só à procura da solução ao invés da compaixão. Só depois disso é que podemos começar à procura de respostas e muitas delas vêm do património afetivo. Se cada um de nós tiver responsabilidade sobre os seus, deixa de ser um problema global e torna-se apenas um desafio individual”.
Por seu turno, o professor Adalberto Dias de Carvalho, reforça que o estudo realizado pelo Observatório da Solidão enfatizou o facto de a época natalícia ser “cada vez menos intensa no que respeita às práticas que realmente simbolizam o seu significado original mais profundo. Significado que, através das valências do amor, nomeadamente da solidariedade e da fraternidade, se estende, ou deveria estender-se, para além das vivências estritamente religiosas que o inspiraram, as quais nunca deveriam ter sido escamoteadas quanto ao seu pendor humano”.
No final, o panorama revela um fenómeno que se mantém constante: o Natal continua a ser uma das épocas em que a solidão entre os idosos mais se evidencia. Psicólogos, voluntários e associações sublinham que não se trata apenas de um problema sazonal, mas de uma realidade estrutural que a quadra torna mais visível. As respostas no terreno mostram impacto, mas também limites: chegam a muitos, mas não chegam a todos. Com o fim da época natalícia, resta a realidade diária, uma solidão que exige soluções contínuas, não apenas gestos pontuais.